Antigos barretes madeirenses

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CARAPUÇA
Barrete de forma cónica usado na Madeira nos séculos XVIII e XIX, influenciado pelo gorro medieval e carapuços portugueses. De um barrete que cobria toda a cabeça, evoluiu para uma forma extremamente elegante, quase de adorno.

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Gravuras (1821-1850)

ANTIGOS BARRETES MADEIRENSES*
José Laurindo de Góis 

Por emblema, janotismo ou defesa climatérica o madeirense desde épocas remotas que utiliza diversos tipos de coberturas para a cabeça. 
Na Madeira durante o séc. XVII usou-se o “barrete cónico”, o “chapéu bicórnio” e, depois o “chapéu de palha de trigo”, com tradição em Portugal nos trabalhos agrícolas durante o séc. XV. Diz-se então dos camponeses da Madeira: “usavam (…) largo chapéu de palha, em geral nas fainas agrícolas”. 
Outras classes sociais utilizam como estigma “chapéu alto”, como os médicos em 1870; na Semana Santa “as senhoras substituíam os chapéus por véus pretos”; e o clero cuja vestimenta também se altera por razões de direcção política no país usava alguns tipos bem definidos de adornos – encontraamo-los, por exemplo, na gravura “Priests in different Attire” , para citar apenas esta; numa gravura das Ilhas de Zargo aparecem vários “barretes típicos esculpidos por 1630 no cadeirado da Sé do Funchal”. 
Cada espécie tem a sua origem, a sua época precisa e sofre influências motivadas por mudanças sociais e económicas que atingem o vestuário. 
Jorge Forster, companheiro de Cook, em 1772 resume assim o traje ilhéu: “linen trowwsers, a coarse shirt, a large hat, and boots”. Barrow que esteve na Madeira vinte anos depois diz que as mulheres “traziam um capacete na cabeça”. 
O capacete de Barrow que começa a intrigar o espírito de observação e muita tinta faz correr não é mais que o antecedente da carapuça. Confirma-o a indispensável iconografia: “Antiga carapuça”, W. Combe, 1821; “Dress of the Country People of Madeira”, N.C. Pita, 1802. Esta, a carapuça, é identificada também por Diogo de Tovar e Albuquerque em 1807: “os homens (…) vestem sempre uma carapuça de pano, unida à cabeça com duas pequenas orelhas”. 
Este tipo de chapéu chamemos-lhe assim aparece nos finais do séc. XVIII e até 1782 nenhuma informação concreta existe a seu respeito. Admite-se que antes da carapuça se usava “um barrete de lã encarnado ou azul”. Segundo alguns etnógrafos é filiada no toucado grego, no gorro medieval, na proveniência semita, em motivos arabescos e orientalizantes e no uso de algumas populações portuguesas. 
A carapuça aparece delineada em alguns desenhos de Paulo Dias de Almeida provenientes de “An History of Madeira, Pub. at. 12. Ackermann’s, 101, Strand, 1821”, Londres, e datados de 1820. É o caso das gravuras “Country Musicians”, “Cammponeses do Sul da Ilha nas Vizinhanças do Funchal” e “Peasants in usual costume”. Na descrição destas aparece sempre, em pormenor, um “barrete do tipo carapuço de boca larga”, no homem, e, na mulher, também “um barrete … bastante mais largo que os que chegaram até nós …” Para já não referir, e apenas nestas estampas, o aspecto policromo e a natureza da restante indumentária. Todavia não nos passa despercebido nos “Country Musicians”, no músico que está ao centro e toca violino o uso de um “chapéu de aba redonda e larga, copa cilíndrica, não muito alta”, em contraste com as carapuças dos vilões laterais. 
Este barrete madeirense que foi capacete para Barrow, aparece, segundo se julga em Rubens e é carapuça durante o século passado, evolui a meados daquele para “atavio” e Cabral do Nascimento crisma-o de uma forma extremamente elegante, assim: – é “pura janotice como a rosa no cabelo das andaluzas”. 
Tarde, em 1888, Léon Manchon, lança no “Annuaire du Club Alpin Français”: “les hommes (.. .) portent encore ce bonnet bleu à longue pointe d’un effet si original”. 
Porém, vinha de 1870 o desuso da carapuça sucedendo-lhe o lenço e a mantilha na mulher e no homem o “barrete de orelhas” conhecido já em 1857 como criação madeirense e nalgumas localidades o “boné de pala” trazido das Américas pelos emigrantes. Aparecem os “barretes de lã preta”e consequentes variantes em algumas freguesias da Madeira: ninho, rodado, solideu…
Na freguesia de Santana em 1895 o Cónego Vaz assistiu “ao funeral das duas últimas carapuças” e na vizinha S. Jorge que contrasta sempre em alegria com a primeira não conheceu carapuças mas os “trabalhadores” “usavam barrete de lã” e os “lavradores” “boné de fazenda escura e pala de verniz”. Destes se recrutavam “os homens bons para a edilidade do concelho”. 
Para um juízo breve da importância historico-social do traje que cai em desuso quotidiano na época de L. Manchon basta-nos esta particularidade da indumentária local. Nela reunimos o emblemático e o utilitário. Sua ancestralidade e atavismos, o evoluir e cambiantes das espécies nas freguesias ou sítios delas demarcam uma riqueza paisagística importante, rivalidades criativas, rusticismo vivo, originalidade histórica e etnográfica. Alma popular que nem sempre parece reflectir-se nos dias de hoje atendendo ao modo como certas pessoas tratam o traje regional que envergam por imperativo da sua profissão. 
São reflexo do desgaste de suas vidas e coisas não alheias a processos culturais e à crise mental de hoje.
Não é o puro espelho do sangue que se reflecte, o casticismo fixo em obra literária daqueles que pelo exercício da escrita depuram o exotismo do traje, peça por peça, particularidades curiosas, e, sem nada poluir, no-lo devolvem lapidado, remoçado ex-libris que nos vai distinguir no futuro.

* in “Da Indumentária e Indústrias Madeirenses”, Revista Atlântico, Vol.6, p. 85-91.

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Fotografias do finais do Séc XIX.