Santo António na Ponta do Pargo

Os cartuchos dos tabuleiros da Festa de S. António na Ponta do Pargo, reminiscência dos pães-de-açúcar?*
Isabel Gouveia

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(…) O tema que aqui iremos tratar está mais relacionado com a etnografia e refere-se a um arraial de Santo António, que anualmente se realiza na freguesia da Ponta do Pargo. Poderia ser mais um dos arraiais que ocorrem por esse arquipélago, sobretudo nos meses estivais.
Trata-se na realidade de um arraial diferente, primeiro porque é uma festa dedicada a Santo António, que normalmente é festejado a 12 de Junho, mas que naquela freguesia celebra-se em Setembro. A festa é celebrada neste mês porque esta é a época alta da produção agrícola e como as oferendas são constituídas essencialmente por produtos da terra, daí a razão desta festividade quase no Outono. Anualmente são nomeados para cada sítio da freguesia os seus regentes, um casal, normalmente crianças ou jovens, que representam o sítio e recebem na sua casa todas as ofertas que os habitantes querem oferecer à Igreja.
Esses mesmos sítios são responsáveis pela construção e decoração do seu bazar, estrutura feita com varas e verduras onde depois da romagem (percurso feito entre a casa do regente e o bazar) são colocadas as oferendas.
No dia da festa, realiza-se um cortejo (a romagem), representando o respectivo sítio e que é encabeçado pelos regentes, acompanhados pelos seus tabuleiros até ao seu bazar, que é construído no adro da igreja.

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Estes tabuleiros são de forma rectangular, feitos de madeira e cheios de trigo no qual são encaixados os cartuchos de forma cónica, que outrora eram recheados de açúcar, o que nos leva a pensar numa directa alusão aos pães-de-açúcar, dada a sua forma. Estes cartuchos são decorados com estampas alusivas ao Santo António e tem tamanhos diferentes, alguns tabuleiros apresentam um só cartucho e outros três cartuchos, sendo o do meio o maior e os laterais mais pequenos e do mesmo tamanho; na parte superior são enfeitados com flores artificiais. O tabuleiro pode ser decorado ainda com ovos, frutos, garrafas de bebidas ou bolos, que depois são vendidos nos bazares, revertendo para a igreja o produto da venda. Actualmente já se verifica algumas variantes quanto à decoração destes tabuleiros.

Dada a especificidade desta comemoração, fomos encontrar uma referência no volume II das “Ilhas de Zarco” acerca de uma festa de pescadores que se realizava em Câmara de Lobos, na qual se pode ler que eram dadas: “outrora oferendas de frutos, doces, pães de açúcar e produtos da terra para o pároco”. Ora, o tipo de oferendas acima referidas corresponde na sua totalidade às que eram habitualmente oferecidas na festa de S. António. A relação destes cartuchos com os pães-de¬-açúcar surge um pouco descontextualizada, na medida em que a Ponta do Pargo, apesar de ser uma região predominantemente agrícola, nunca produziu açúcar. Contudo, pertence a um concelho que foi grande produtor de “ouro branco” e ainda hoje teima em manter um engenho de produção de aguardente, o Concelho da Calheta.
Como a tradição já não é o que era, aos poucos estas tradições vão esmorecendo e acabando mesmo por desaparecer, serve este pequeno artigo para dar a conhecer uma prática bastante interessante que segundo o nosso conhecimento não se pratica noutro ponto da ilha. Fazemos votos para que este arraial continue a realizar-se por muitas gerações…
A realização desta celebração profano -religiosa perde-se no historial da freguesia; seria um ritual de agradecimento pelas boas culturas? Ou então sendo o açúcar um produto nobre a sua oferta à igreja não seria mais do que o pagamento de uma tença que em muitos casos era paga em azeite para os lampadários do sacrário?
Outras questões poderíamos aqui deixar à laia de repto, para um estudo aprofundado sobre este original arraial. Fica registado o desafio!

Fonte: * Ilharq – Revista de Arqueologia e Património Cultural do Arquipélago da Madeira, Número 5 -Ano 2005 ARCHAIS -Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira